Percebemos quando ele chegou à cidade. Homem novo, gente nova, claro. Gente diferente. Assim era o que ele nos inspirava: uma sutil e extravagante diferença. As duas coisas. A mulherada assanhada jogava todas as hipóteses e informações adquiridas. Hum, parece que ele gosta de rock. Hum, parece que ele fuma. Hum, parece que ele bebe. Hum, parece que ele gosta de blues.
Quando Pacceli chegou, parece que foi um furacão de olhares. E ficamos acostumadas a dizer assim: Samara é a felizarda, os dois têm sorte.
Era uma figura na motoca. Um personagem. Começou a aparecer como intelectual imbatível, com as posturas corretas e de extrema convicção. Se duvidasse de algo, assumiria. Não cansava de receber elogios. Não cansava porque não escondia sua vaidade. Sabia que desmanchava corações. E com uma voz meio rouca, meio gutural, meio plástica.
Pacceli, o professor. A barba rala, rarefeita, para dizer de um ser com identidade. Parecia gordo, às vezes. Parecia fofo, às vezes. Parecia acima do peso, somente. Não tínhamos o que reclamar. Tínhamos o que admirar. Daí, mantínhamos amizades espiãs no campus para falar dele, sobre o que ele fazia, o que ele contava de piadas, como eram suas aulas. Mulher, quando quer, é unida.
O forasteiro logo se tornou fã do Açude Grande. O forasteiro logo se tornou filho. Era dotado de uma estranha simplicidade também. Como explicar essa feição roceira e urbanística? Uma estatura meio cosmopolita e, ao mesmo tempo, sertaneja. Bom para servir nhoque à bolonhesa, mas, também, carne de sol com macaxeira.
Pacceli virou meu leitor. Quanta honra. Como assim? Você é meu leitor? Eu perguntei, quando ele comentou uma crônica. Gelei na hora. Era como um ator de cinema: de perto, queremos o autógrafo. No meu imaginário, era mais a responsabilidade em ser escritora para um fetiche de muitas mulheres. Era a responsabilidade de editar uma revista que ele gostava.
Segundo os alunos, o cara. Segundo os leitores, autêntico. Quando ele soube que eu estava engrampada com a História, estudando Monteiro Lobato, soltou vivas de felicidade. Fez questão de me dizer. Na reta final da produção da minha dissertação, por acaso nos vimos no campus. Perguntou se eu já tinha tido aquela vontade de rasgar tudo e começar do zero. Perguntou, rindo, se meu julgamento era confuso, de olhar para o lixo de vez em quando. Eu respondi, na hora, que sim. Ele disse: fique tranquila, Dona Moura, pois são os espinhos do conhecimento.
Sentia que ele falava como se musicasse, mas quase não o vi tocar na Arlequim. Aliás, devo ter visto uma vez. Muito pouco. Ficamos nos devendo mais conversas, criancices e melodias da vida.
Talvez ele esteja agora naquela parte da história que os livros acham que descrevem. Num lugar mitológico. Num lugar cifrado.
Ele deve estar entre civilizações perdidas e achadas, detectando dromedários alados e unicórnios ou dragões que encantam caçadores, vaga-lumes celtas e toda a trupe de navegadores ou samurais. Ele deve estar entre uma e outra pirâmide ou correndo pelos labirintos atlantes, dialogando com reis e rainhas, aprontando com sábios ou curandeiros. Deve estar disfarçado de eremita ou mago. Talvez numa viagem fenícia rumo às Américas, talvez garimpando em regiões do Nilo, talvez meditando numa oca de tupinambás.
Não sei. Talvez numa manifestação de vikings, numa operação secreta nos Andes ou num banquete para eslavos. Talvez incensando um mosteiro beneditino ou discursando numa taberna genovesa. Talvez tocando alaúde em algum castelo siberiano ou administrando um campeonato de centauros. Talvez trabalhe como escriba, arqueiro ou alquimista.
É difícil situá-lo no tempo. Para um historiador apaixonado pela profissão, é uma das tarefas mais árduas.
Vejam, só, que coisa. Foi embora assim que completou vinte anos de cajazeirado. Cumpriu mais uma missão, o rapaz da terra do sal. O rapaz que nos deixou com a doçura da sua grandeza.
Siga em paz, mestre.
Cristina Moura é jornalista e professora em Vitória-ES.
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