3 de junho de 2012
Duelo e linguagem no Sertão que sonha o Mar
ANDRÉ RICARDO AGUIAR
Não se deve ter medo de abrir um livro, ainda mais este artefato estranho: o livro de poemas. Por extensão, não se deve sugerir aqui que o poeta fala uma linguagem tão cifrada, nem aérea demais, nem abaixo da terra, das raízes intercambiáveis só para os acadêrmicos. Não, poesia ainda é comunicação. Claro, linguagem elevada ao potencial máximo de expressão, musicalidade, ritmo, estas geografias contam muito. Mas não é só isso. Poesia é sortílégio, cabala, runa. Poesia é tempo, memória, dimensão familiar e arquétipa. E o poeta, um homem qualquer que também ama, sofre, descobre, analisa, perfura, voa. O projeto de Linaldo Guedes na feitura deste seu Metáforas para um duelo no sertão, publicado pela editora Patuá é um apanhado de peças que traçam sua genealogia à maneira de um mestre do entalhe: quer gravar na madeira, no chão e na pedra sua odisséia particular pela família. A palavra “sertão”, no entanto, expande seu sentido em várias rotas: a do matuto preso à paisagem de origem, do retirante que vai em busca de outras fontes, outro modos de viver e a do ser duplo, campo e cidade, que olha a tudo com espanto e com competência no artesanato de viver, sobreviver.
Linaldo Guedes tem uma obra que acompanha um ciclo já muitas vezes apontado como recorrente em poetas inquietos. Parte de um ponto de aproximação com a sua voz, ao estabelecer, no seu primeiro livro Os zumbis também escutam blues (1998), a procura de seu labirinto de referências culturais, existenciais. Em seguida, publica Intervalo Lírico (2005), mais consciente dos caminhos e criando novas possiblidades, agora com uma mirada mais coesa, de temário amoroso, mas sem regras, criando aqui e ali pontos exteriores.
Agora, com o mais recente trabalho, como que faz uma súmula de suas linhas mais pessoais, Linaldo coloca seus artefatos líricos em várias direções: a terra (e o exílio dela), a herança familiar, os temas amorosos, sua visão de mundo, tudo isto compondo um painel sincero e de espanto, um espanto múltiplo onde a linguagem parece se mover com uma liberdade consciente do caminhante. Em outros casos, adota um rigor, ma non troppo. Em todo caso, é um composto de muitas influências permeado de ironias, irreverências, provocações. Ecos de boitempo com alguma poesia drummonianos. O registro lírico pode nos dar peças como 2 velhos:
sentados
na calçada
jogam conversa fora
é fim de tarde!
e às vezes
só querem jogar olhares fora
(o silêncio fala
sobre a vida que já veio)
Linaldo Guedes é um poeta boêmio, um companheiro que numa mesa pode ser visto com Vinícius e Bandeira entre copos. O flagrante não destoa, porque ele faz um uso afetivo do verso livre como um telescópio manso, impregnando sua poesia de um olhar de viés: ele vê por sugestão e alumbramento aquela zona magoada da memória, onde poucos arriscam. Não tem medo de soar naif, nem antiquado. Sentimos como se litoral e sertão estivessem ali, na linguagem, ora abertura, amplidão, ora fechamento, foco, o flagrante da intimidade devassado pelo olhar pouco inocente do exilado, do livre-pensador, do desiludido que voltou a descobrir a felicidade das coisas simples, urbanas ou não.
O motivo amoroso é reincidente, como aponta no prefácio o poeta Antônio Mariano. Lubricidade e malícia. Arroubos, paixões: “Amor quando chega / não faz toc toc toc / / simplesmente derruba a porta / invade nossa aorta”. Há um bom apanhado de poemas deste calibre, muitos com imagens que reforçam as motivações que o poeta persegue mesmo com os riscos do lugar comum. Coisa que é herança que nenhum abismo intertextual há de negar. Poesia é ponte elevadiça.
Metáforas para um duelo no sertão indica caminhos possíveis. Aliás, depois de uma lacuna de muitos anos, a centena e uns quebrados de poemas dá a sensação de testamento e resgate. Ou a marca que não sai:
“sou um homem marcado
marcado para doer
gado preso no curral
quando não, abatido
comendo Baudelaire
na erva daninha do meu capim”
Poesia de miradas, feixe de caminhos, sertão e mar. O poeta Linaldo Guedes resiste assim, fingindo o tempo em que acredita e por ele transformado. Todo lugar, acidentado ou plano, é terra fértil para a linguagem. Quem tem sua lavoura que a produza e faça dela o melhor uso. Este já a fez.
(Texto publicado no jornal Contraponto, de João Pessoa, edição de 01 de junho de 2012. André Ricardo Aguiar é poeta paraibano)
Em tempo: O livro Metáforas para um duelo no sertão, de Linaldo Guedes, pode ser adquirido no site da editora: www.editorapatua.com.br
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