3 de junho de 2012

Trauma de futebol


GERALDO BERNARDO

Todos sabem o quanto detesto futebol. Não digo aquela pelada no time de chão batido, dos solteiros contra os casados ou dos times de garotos que ao chegarem da escola, mal comem um pedaço de pão, correm para o “campinho de Nestorina” ou de outro nome, mas aquele campinho onde se improvisa o time: Eu, Cassiano, Cassio, Cassimiro e casse outro. Esse futebol é bom.

O que não presta é aquele que vale bilhões, que tem cartola e juiz venal. O que deixa qualquer trabalhador consciente indignado de ver um sujeitinho arrogante (que fala: “nós vai”) ganhar milhões e rasgar dinheiro, esnobando aqueles que se dedicam anos a uma profissão. Esse futebol é ruim.

Acho que desenvolvi esta antipatia mórbida pelo esporte bretão, a primeira vez que senti o peso da arrogância e da opressão em campo. Tudo por causa de um dono da bola.

“A bem da verdade”, a bola nem era daquele sujeitinho medíocre. O dono da bola era um sujeito justo, sabia jogar bem, pisava no chão com humildade, tocava a bola com todo o time e não lhe preocupava se era outro que fazia o gol. Tanto fez o camarada que entrou na grande roda dos times de primeira divisão. Mas, deixou um chegado seu tomando conta da bola. Um desastre.

O sujeito era dissimulado, todo santo (do pau oco). Só vivia na “banheira”, como os craques de hoje em dia, isto é, ficava lá na grande área (existe isso, não existe?) só esperando o passe para fazer o gol, igualzinho agora. O time todo tinha que obedecê-lo, venerá-lo, senão! Tirava a bola do jogo, punha debaixo do braço e saía esculhambando todos.

Depois íamos, todos, pedir desculpas, prestar condolências pelas mágoas, um chororô pra pedir que voltasse a pôr a bola em campo. Quem não seguia o ritual saía do time.

Éramos pobrezinhos, comprar uma bola de couro como aquela, nunca! Jamais! O máximo que conseguimos comprar foi uma bola “dente de leite” que ficou oval no primeiro jogo. Uma decepção!

O burguesinho lá era filho de barão e amigo do craque, impunha. Era ardiloso, o capeta. Tinha malícia de gente feita nas ruas, dava surra de conversa em qualquer jornalista ou advogado, num já disse que era um danado. E para jogar no campo do bairro só com sua autorização.

Como sempre fui desacunhado, frouxo que nem cós de octogenário, mas, no verbo desaforado tinha pós-graduação, tomei fôlego e firmei as pernas, enchi o peito tal qual pombo e desarrolhei minha verborragia:

- Num fique pensando você que vou humilhar-me – fui desembainhando o palavrear – não tenho sua cobiça, sou mais cristão que muita gente, mesmo sem ter quer ir à missa. Mas, gente como tu é como areia movediça. Quanto mais se mexe mais se afunda num pequeno mundo. Eu quero o mar aberto, o vento em redemoinho, não quero seu mundo mesquinho, de muros elétricos e cercas de espinhos.

Fui falando, ele abismado, acho não entendia bem o que eu dizia. Aquilo me deixando enfezado.

- Não jogo mais com você, tampouco quero tirar seu time.

Ele fez o jogo da dissimulação, com cara de canastrão acuado.

- Que é isto, você está sendo injusto, além do mais não sei do que fala.

Então respondi com os bofes, inchando as veias do pescoço, com cara de alvoroço, disse-lhe:

- Deixe de ser canalha! Eu sei que teu medo é de perder a posição, pois, se num fica lá na frente num fazia gol não. Tua literatura é de revista, teu papo de comunista é puro romantismo intelectual.

E com tanto ódio que eu estava, olhei para os lados, vi a bola, meio surrada, o resto do time tomando banho, um filete d’água serpenteava o vestuário. Parti com toda fúria que havia em mim para chutar a bola contra a parede ao fundo, pensei em estourá-la com tanta violência que ia chutar.

Meu velho tênis Conga, todo roído e liso, sem antiderrapante, me sacodiu no cimento duro e frio. Lasquei o quengo chão que o mundo tiniu. Os garotos olharam todos ao mesmo tempo e caíram na risada, tanto que nem se encabularam em ver suas vergonhas balançando.

Levantei-me meio zonzo, um corte no cotovelo, uma ira dentro de mim, vergonha de mim mesmo, trinquei os dentes e saí pra nunca mais voltar a pisar num campo de futebol ou quadra.

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