Frassales Cartaxo
O centenário de Waldemar trouxe da minha infância sua imagem mais forte. Meu pai, Cristiano Cartaxo Rolim, estava febril, com uma tosse sem fim a irritar-lhe o corpo e a mente, inquieto, passeava de um canto a outro do terraço do casarão onde nasci, sentava-se no chão, sem encontrar lugar que lhe satisfizesse. Apesar disso, resistia a chamar o sobrinho-médico. Resistiu enquanto pôde até ceder, num fim de tarde, dobrado pelos sintomas do mal agravado a cada hora.
Waldemar chegou com seu jeito maneiroso de cuidar das pessoas, tirou a pressão, auscultou o tórax, nem fez as perguntas de praxe porque meu pai foi desfiando o quadro com a calma que lhe era própria. Os dois trocaram palavras estranhas a meus ouvidos de menino, olhos esbugalhados diante dos gigantes, ali à vista, tão próximos entre si, e tão longe de mim no saber científico, os dois: meu pai e meu primo.
- Tio Cartaxo, tem razão, tem razão, é pneumonia, pneumonia ainda no começo mas é pneumonia, você está certo.
A meus olhos de criança, o pai-herói sobreviveu. Naquele instante, o ídolo (que todo pai é perante o filho) escapou da destruição. Aliviado, respirei, mesmo sem ter idéia da gravidade da tal pneumonia. Aí, Waldemar agigantou-se na minha visão infante. E desde então, os dois deuses, quase deuses, o pai e o primo, povoaram minha mente.
Preciso dizer aos que conhecem Cristiano Cartaxo apenas porque empresta o nome à Escola Polivalente ou à praça que exibe sua cabeça espetada num cano de ferro à guisa de estátua ou pelas poesias deixadas, preciso dizer-lhes que meu pai era farmacêutico, formado no Rio, em 1913. E que ao retornar a Cajazeiras passou a exercer sua profissão na botica do seu pai, major Higino Rolim (sobrinho do padre-mestre Inácio de Sousa Rolim) quase como se fora médico, porque naquele tempo eram poucos os médicos por essas bandas. Waldemar veio mais tarde, aí pelos anos de 1940, após formar-se em 1934, também no Rio, e depois de clinicar lá e em Sousa.
Waldemar foi um monstro do bem. Exercia a profissão com amor, sem apego a recompensas materiais, na constância do estudo para firmar diagnóstico e acertar na terapêutica, numa época em que os recursos tecnológicos hoje conhecidos sequer engatinhavam no mundo. Imagine nos confins da Paraíba! Essa imagem que guardo de Waldemar se insinua, sempre, à vista de seus filhos Jane e Pepé, tidos com Ica, (Júnior, o do segundo casamento eu não conheço) ou quando vejo Lívia, Marina ou Neto, ou escuto alguém falar de Mariana e Gabriel, netos e netas.
Nessas ocasiões, a imagem do filho de tia Cartuxinha e major Galdino embaralha com a de meu pai. Waldemar auscultando meu velho é muito forte e só precisou da leitura, no blog de Christiano Moura, do registro dos 100 anos de nascimento para gerar em mim o impulso de escrever esta crônica, desprezando até a rica biografia do primo, médico, político por injunção familiar e conveniência partidária no tempo da UDN de Argemiro Figueiredo e do velho PSD de Ruy Carneiro.
Frassales Cartaxo é economista e escritor residente em Recife-PE.
2 comentários:
Parabens Cristiano por deixar a criança falar por você, você voltou no tempo e relatou o que sentia na época.
Qualquer pessoa que leia essa crônica também ressucitará alguma lembrança de infância semelhante, e como eu sera capaz até de sentir o cheiro de meu pai.
A homenagem me emocionou muito porque Dr. Waldemar cuidou de meu irmão caçula que nasceu com raquitismo, no ano de 1958 e ele ia em nossa humilde residência, lá na rua João Moreira, com sua maleta e acompanhava o meu irmão. Naquela época, não havia vitaminas em forma de remédio e ele orientou meus pais a dar muita água de côco e muito suco de frutas para o meu irmão bebê, que sobreviveu, embora com sequelas. A imagem que guardo dele é a de um homem vestido de branco, sempre com uma enorme maleta. Nessa época, eu tinha três para quatro anos e quando ele chegava, era o nosso anjo.
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