Um político, um padre e um gênio da eletrônica. Os três primeiros suspeitos pelo atentado à bomba no Cineteatro Apolo 11, em Cajazeiras, alto Sertão da Paraíba, na sessão de cinema da noite de 2 de julho de 1975, eram pessoas ironicamente acima de qualquer suspeita. A liderança, o conhecimento e a inteligência de cada um fizeram com que as suspeitas surgissem de imediato nas rodas de esquina. Na cabeça da população, espantada com a explosão de uma bomba na pequena Cajazeiras, só o líder de esquerda do MDB, deputado Braga Barreto, o padre americano Mr. Boyes e o inventor Inácio Assis tinham sabedoria para montar uma bomba. Mas, qual a motivação? Um era agitador, o outro foi censurado pelo bispo e o terceiro gostava de se exibir. As especulações caíram como uma luva, todavia, como argumento para contemplar interesses de quem desejasse abafar o episódio. Em plena ditadura militar, no País, havia desde 1974 uma prometida abertura política, anunciada pelo presidente Ernesto Geisel, mudança que receberia uma furiosa reação da direita política nos seis anos seguintes.
Quem teria capacidade e motivação para montar uma bomba contra o bispo conservador dom Zacarias Rolim de Moura? Quem foi a pessoa que entregou dois ingressos na portaria e entrou com uma mochila nas costas? As investigações são um mistério e um desafio. O cartório da Polícia Federal em João Pessoa diz que, pelo tempo, o inquérito pode ter sido enviado à Justiça Federal, mas não tem registro nos arquivos. O Tribunal Regional Federal (TRF-5ª Região) rastreou seus arquivos, mas, por ser um crime antigo e não ter o número do inquérito, nada localizou. O Comando Militar do Nordeste revela que parte do arquivo do antigo IV Exército foi enviado para Brasília, e qualquer documentação que exista sobre a investigação deve ter sido encaminhada. A Delegacia da Polícia Civil de Cajazeiras não possui inquérito arquivado daquelaépoca. Reformulação e informatização dos sistemas de arquivos dificultam a busca, uma vez que crimes daquela época estão prescritos e inquéritos podem não existir mais, argumentam a Polícia e a Justiça.
O titular do 1º Cartório da Vara da Justiça de Cajazeiras, em 1975, Renê Moésia, 78, tem absoluta certeza que um inquérito foi concluído e que o processo foi despachado para a 2ª Vara. O inquérito foi concluído. À época, comenta-se, a intenção era matar o bispo. Foi para a Justiça Criminal, porque os réus não tinham foro privilegiado. O processo foi distribuído para o 2º Cartório (2ª Vara) , revela. Procurados os 1º e 2º cartórios criminais, que correspondem aos cartórios da época do atentado, e que recebiam os inquéritos, não há nenhum registro nos livros de tombo. Não sei nem se teve processo. Foi área federal. O inquérito foi instaurado. A Polícia Federal esteve aqui (Cajazeiras), o Exército também. Agora, nunca foi descoberto o autor. Não teve réu , contesta a tabeliã Maria Dolores Timóteo, titular do 2º Cartório à época da bomba. O TRF-5ª Região, no Recife, não encontrou o processo. Rastreou o Ministério Público Federal e o da Paraíba, e também não localizou. Naquela época, os processos eram registrados em livro, só constando o número. São quase 200 mil processos que ainda não estão informatizados, diz o comunicado.
Na agitação, padre contra padre
Dois episódios traduziram os sentimentos contraditórios e reproduziram em Cajazeiras a vida como era ela no período mais duro da ditadura militar de 64 no País. De um lado, o obscurantismo do regime, o misterioso e o sigiloso no bojo da repressão, de outro, o clandestino, o ódio e a intriga na forma da contestação.
Em 1974, começa a se organizar um processo político que a diocese considera de agitação e contra-revolução . Padres italianos oriundos da Diocese de Verona chegam para a atividade pastoral na região. O primeiro a desembarcar é o padre Walter Sphagetti. Até 1976, chegam mais quatro a serviço pastoral da Igreja.
Eles faziam reuniões fechadas à noite, afastados do perímetro da cidade, nos sítios. Algumas lideranças sindicalistas eram levadas. Só participavam os devidamente convidados. Era do conhecimento de dom Zacarias, que nunca foi chamado a participar, relata padre Raimundo Honório Rolim, 80, aposentado.
Os italianos se rebelaram e passaram a contestar a autoridade do bispo. Padre Giuliano Pellegrini chamou, até pela rádio Difusora, o bispo de mau pastor. Faziam uma campanha do nós ou o bispo. Tomaram uma posição de confronto. Quem estava longe, achava que havia uma guerra em Cajazeiras, recorda padre Raimundo. Diante da quebra da hierarquia, os padres conservadores sugeriram a dom Zacarias uma reação. Só tinha um jeito para evitar que isso se propague. Colocar esses padres (italianos) para fora da diocese, justifica.
Dom Zacarias atendeu, então, ao conselho e escreveu ao bispo da Diocese de Verona, pedindo que eles sejam retirados de Cajazeiras. O pedido foi atendido. Foram afastados e os ânimos serenaram.
Em 1975, a face oculta da ditadura transforma em mistério o atentado do Apolo 11. Até hoje, autoria e motivação são desconhecidas. Restaram suspeitas, versões e especulações.
Durante a apuração, a Polícia Federal informou a dom Zacarias Rolim que um depoente contou ter escutado uma conversa ao telefone de pessoa desconhecida, quando da chegada das vítimas o soldado Altino Soares (Didi), o operador Geraldo Conrado e o menor Geraldo Galvão ao Hospital Edson Ramalho, em João Pessoa (depois de dois dias na urgência do Hospital Regional de Cajazeiras). Dois homens na portaria, um deles fala ao telefone público: O objetivo foi atingido. Uma das vítimas já morreu (o porteiro Manuel Justino Conrado, Manuelzinho, o primeiro a dar entrada). Outro já está no hospital. Isso foi conversa ouvida na hora, lá, ressalta padre Raimundo Honório, que à época era do Conselho Eclesiástico de dom Zacarias.
Por conta dessa versão, dom Zacarias passou a acreditar que não era o alvo do atentado, embora a bolsa com a bomba tenha sido colocada debaixo da cadeira que ocupava sempre nas sessões de cinema do Apolo 11. O bispo havia viajado ao Recife dois dias antes. Ele nunca me confidenciou ter recebido qualquer ameaça, acrescenta padre Raimundo, que refere-se ao regime militar como governo revolucionário.
O prédio do Cineteatro Apolo 11 permanece o mesmo em sua fachada. Só o portão de entrada foi dividido em dois. Hoje, abriga o Lar Sacerdotal que tem o nome de dom Zacarias e acolhe padres aposentados.
O auditório virou um jardim. A Rádio Alto Piranhas foi vendida e saiu do local. O estúdio e a discoteca dividiam o primeiro andar com a sala de projeção. As salas da redação e direção (no térreo) são as mesmas, apresenta o padre Antônio Luiz do Nascimento, padre Buíca, 74, aposentado, que também auxiliou e integrou o Conselho Eclesiástico de dom Zacarias.
ENTREVISTA MR. BOYES
Mr. Boyes se diz anticomunista
O padre norte-americano e professor aposentado da Universidade Católica (Unicap) e UFPE Francis Xavier Boyes, 78, um dos três suspeitos de autoria da bomba do Apolo 11, decidiu viver a sua velhice no Recife. Nascido em Nova Iorque, chegou em Cajazeiras para ensinar latim nas escolas da diocese e acabou ordenado padre por dom Zacarias Rolim. Em 1974, vem para a Unicap, onde funda as cátedras de latim e grego. Rechaça a suspeita pela bomba e afirma: Sou tão anticomunista quanto o Exército.
JORNAL DO COMMERCIO - Onde o senhor estava quando ocorreu o atentado no Apolo 11?
Mr. Boyes - Eu já ensinava na Universidade Católica de Pernambuco. Estava no ônibus, voltando para o Recife. Quando cheguei em Souza (a 40 km), deu a notícia da bomba no rádio. A Polícia Federal me intimou. Primeiro em Cajazeiras, depois, em João Pessoa. No Recife foi o último depoimento. Evidentemente, a Polícia Federal não estava satisfeita comigo. Eu não tinha nada contra dom Zacarias. A suspeita, não sei. Por que sou americano? Eu era um professor rígido e muita gente ficou reprovada.
JC - O que a Polícia perguntava ao senhor?
Mr.Boyes - Perguntavam se eu sabia fazer uma bomba, e eu disse: não! Se eu acreditava na pena de morte, e eu disse: acredito! Para que? Eu disse: ah, quem fez essa bomba deveria ter pena de morte, porque matou pessoas. Se eu gostava de D. Zacarias, eu disse: gosto! Se eu estava satisfeito porque saí de Cajazeiras, e eu expliquei que queria ensinar latim. Não acreditavam em mim.
JC - O senhor era da linha progressista?
Mr.Boyes - Não, sou conservador. Quando a missa mudou para o português, continuei celebrando em latim.
JC - Há relatos que o senhor se atritava com D. Zacarias, por ser muito liberal. É verdade?
Mr.Boyes - Liberal em certas coisas. Por exemplo, eu não vestia mais a batina. Era roupa normal. Mas, nas coisas de doutrina eu sou conservador. Se ele não quisesse, eu teria vestido batina. Eu não era o único. Fui ordenado por D. Zacarias, me dava muito bem com ele. Sempre jantava com ele e depois jogávamos gamão. Ele me deixou sair de Cajazeiras por livre vontade.
JC - No regime militar, setores da Igreja se aproximaram de organizações armadas que lutavam contra a ditadura. Padres morreram. O senhor teve alguma atuação política no Brasil?
Mr. Boyes - Nunca. Nem simpatia. Escrevi a minha mãe (nos EUA): olha, eu não tenho nenhum problema com o Exército, eu sou tão anticomunista quanto o Exército. E sou. O comunismo era ateu e eu sou cristão, como podia suportar aquilo? Aí, sempre fui anticomunista.
Braga Barreto e a fama de agitador
Imediatamente após a explosão da bomba do Apolo 11, a suspeita recai sobre o ex-presidente do Diretório Central do s Estudantes (DCE) da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), João Bosco Braga Barreto, formado em Filosofia e Direito. A suspeita nunca foi comprovada pela Polícia Federal. Na militância estudantil contra a ditadura militar, na década 60, Braga Barreto e um grupo de estudantes receberam proteção de dom Helder Câmara, que os abrigou no Mosteiro de São Bento, Olinda, vestidos de batina e com as cabeças raspadas.
Orador da turma de Direito de 1968, colou grau no dia 13 de dezembro de 1968, quando faz uma saudação ao revolucionário Che Guevara, que morrera em 1967. Naquele mesmo dia, o então presidente da República, general Artur da Costa e Silva baixava o Ato Institucional nº 5, aprofundando a ditadura militar no País.
Com a inquietude da militância política estudantil, volta a Cajazeiras para advogar em defesa de camponeses e pobres e começa a ganhar a fama de agitador de massas. Derrotado para a prefeitura em 1972, é eleito deputado estadual pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Preso pela Polícia Federal, em 1980, foi enquadrado em dois artigos da Lei de Segurança Nacional, acusado de promover a desordem pública e atentar contra atos do governo militar. Faleceu de câncer em 2002, aos 65 anos. Acusado de extremista, era assumidamente de esquerda, mas incapaz de uma ação violenta, isenta o ex-deputado do MDB, hoje professor de História da Universidade Federal da Paraíba, Francisco Chagas Amaro.
Em depoimento, a explosão de Assis
Um brilhante técnico em eletrônica, autodidata e introspectivo, Antônio Inácio de Assis foi intimado de imediato pela Polícia Federal. Admirado pela genialidade das invenções, a Inácio Assis é creditada a instalação do primeiro telefone em Cajazeiras. Era um telefone a manivela. Chegou a montar uma central telefônica na cidade (vide foto). É um orgulho da cidade e apresentado como um exemplo de inteligência, por uma população que preserva o lema de Cidade que ensinou a Paraíba a ler.
O jornal Estado Novo (alusão ao regime ditatorial de Getúlio Vargas à época), de 12 de janeiro de 1941, nº 74, ano II, já registra o então jovem Inácio Assis promovendo experiências. O jornal publica matéria com o título Inácio Assis fez novas experiências. O jovem realizou duas explosões de bombas à distância, a maior com 13 kg, na Praça 26 de julho. Com essas experiências, Inácio Assis demonstrou a positividade de seu invento, elogia.
No depoimento à Polícia Federal, indignado com a suspeita, Inácio Assis perdeu o humor quando foi provocado a avaliar a explosão do Apolo 11. Eu não faria uma porcaria dessas. Isso é obra de quem não sabe o que está fazendo. Se eu fizesse uma bomba, não tinha ficado um tijolo dentro dessa redondeza, disse, conforme conta a cidade.
Certa vez, explodiu por controle remoto uma bomba no morro do Cristo Rei, a 2 km de sua casa. Era capaz de provocar a interrupção magnética de um carro que passasse na rua. Apertava um botão e o carro estancava. Ele virou uma lenda. Trazia novidades tecnológicas para a cidade. Utilizava os conhecimentos para impressionar as pessoas, descreve o economista Francisco Cartaxo Rolim. Inácio Assis morreu em 2007 aos 88 anos.
A politização nas veias de Cajazeiras
A tradição cultuada no meio do povo pelo padre Inácio de Souza Rolim, Padre Rolim, fundador de Cajazeiras (1863), de priorizar a educação acabou rendendo à Cajazeiras o reconhecimento da Paraíba. Paralelamente, a elevação do nível educacional levou a um estágio de politização que dividiu a cidade. Nos anos 60, em pleno regime militar, a politização dos estudantes gerou uma polarização no movimento estudantil. Em 1966, só a presença de um oficial enviado pelo IV Exército (hoje Comando Militar do Nordeste), no Recife, evitou um conflito entre estudantes de escolas públicas e das escolas da Diocese.
Nove anos antes da bomba do Apolo 11, a eleição do presidente do Grêmio Estudantil de Cajazeiras, aluno do Colégio Diocesano Padre Rolim, gerou uma reação de estudantes dos colégios Estadual e Comercial, mais numerosos, que tentaram evitar a posse, numa ação liderada pela Associação dos Estudantes Secundaristas de Cajazeiras (AESC). O candidato do Diocesano, William Pinheiro de Vasconcelos foi coagido a não assumir. Os alunos dos estaduais saíram em passeatas contestando o resultado da eleição e passaram a hostilizar o vencedor. A ameaça era de levar uma surra caso saísse à rua, tendo William recebido a proteção do diretor do Diocesano, padre Raimundo Honório Rolim, membro do Conselho Eclesiástico de Cajazeiras.
Comuniquei o fato ao IV Exército para providências. Era uma fato estudantil, mas tinha tomado uma proporção perigosa. Veio direto do Recife um oficial para dar posse ao William. Era um tenente do Exército que hospedou-se no Diocesano. Na sacada da Prefeitura, William Pinheiro tomou posse sob a proteção dos soldados do Tiro de Guerra de Cajazeiras (comandado pelo sargento José Barbosa de Carvalho Filho), requisitado pelo oficial , relata padre Raimundo Honório, 80.
Conservador como o bispo dom Zacarias Rolim de Moura, de quem foi assessor, o ex-diretor do Diocesano tomou a decisão de comunicar ao IV Exército. Dom Zacarias disse que eu tomasse providências para evitar que o problema aumentasse de proporção, detalha.
Padre Raimundo revela que obedeceu a uma determinação do governo militar de sempre informar ao IV Exército, por isso não pediu apoio ao Tiro de Guerra (subordinado à 7ª Região Militar, no Recife). Havia uma centralização das comunicações. Informação e comunicação sobre expulsão de aluno, por motivo político ou comportamental, eram feitas direto ao IV Exército. Não podiam sem através das unidades militares, explica.
A expulsão de aluno significava uma condenação e uma forma de repressão. Ele ficava impedido de se matricular, por quatro anos, em qualquer colégio do Brasil. Cheguei a expulsar oito alunos do Diocesano, e eles perderam o direito de estudar por quatro anos, não esconde padre Raimundo.
O historiador da UFPB, Francisco Chagas Amaro, 58, participou dos embates dos anos 60 entre estudantes de colégios públicos e os da Diocese. A rixa vem de 1964. Na eleição para a AESC, João Batista Braga Barreto (já falecido), irmão de João Bosco Braga Barreto que veio do Recife para a eleição não aceitou a derrota para o candidato da Diocese. Descemos o auditório da Prefeitura debaixo de um quebra-quebra.
Reportagem de Ayrton Maciel no Jornal do Commércio (Recife-PE)
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