17 de abril de 2011

O Concilium

Por Geraldo Bernardo

Fiquei encantado quando mirei o prédio, vinte e cinco andares de concreto, ferro e barro cozido em forma de blocos. Uma maravilha! Não sei qual o motivo que o abandonaram antes de concluí-lo. Deixaram tudo quase pronto, cada pavimento com dois apartamentos, um luxo. Na José Farache em Lagoa Seca, próximo ao Midway, quem me levou até ele foi Zé Pezão.

Não podia existir lugar melhor para edificar nossa congregação. A estrutura sólida e suja estava completamente pichada, alguns espaços não estavam ocupados, percebia-se pela falta de varais.

Trapos ocupavam espaços de futuras janelas, algumas protegidas fragilmente com papelão. Haviam ocupado os moradores de rua, fumadores de crack, quengas em fim de linha, hippies decadentes, catadores de papelão e latinhas, bebuns desprezados de toda sorte. Para aumentar minha alegria, não havia crianças no local. Fiquei encantado com aquele universo, mais de uma centena de maltrapilhos e fedorentos seres sem dono, viventes do abandono, párias do capitalismo triunfante, principalmente, frágeis e fáceis. Não havia lugar melhor para lançar a pedra fundamental de MINHA IGREJA.

Escolhi a cobertura. Para tal, Zé Pezão precisou dar uns catiripapos num casal, ameaçou de jogá-los lá em baixo junto ao monte de sacolas brancas cheias de excrementos. A montanha de “pombos sem asa” – é assim que Pezão refere-se a sacola voadora cheia de fezes que cada morador arremessa – ficava no espaço da garagem. O poço do elevador, nunca montado, estava cheio. Imaginem o odor que exalava.

Após uma semana de convivência, quando me ambientei com a maioria dos residentes, convoquei o primeiro concilium. Precisávamos dirimir algumas dúvidas, tomar encaminhamentos, definir dogmas e, principalmente, arranjar dinheiro, verba, numerário, que ninguém vive só de ladainha não.

Zé Pezão sempre ao meu lado, com seu porrete aparente e o punhal escondido, secretariando tudo, apesar de quase cego tem uma memória prodigiosa. Purezinha chegou por volta de meia noite, cheia de álcool e hematomas. Um chupão no pescoço o batom todo borrado e o cabelo ainda molhado do banho que tomou na Praça Cívica. O primo Cigano apareceu quase duas da manhã com a pupila dilatada e uma latinha com cinzas para queimar a pedra. Estava formado meu time de desvalidos e desvairados.

A reunião foi tranqüila em parte. Somente pequenos atropelos; Purezinha ainda fez um strip tease e o Cigano quis voar de cobertura abaixo. No mais fomos discutindo ponto a ponto. Primeiro o local de nossa sede, todos elogiaram o edifício. Difícil consenso foi arranjar meios para o financiamento de nossa causa. Gostei bastante das idéias do Cigano. Ele disse-me, com argumentos plausíveis, que devíamos trabalhar em duas frentes: a primeira legal, junto ao Estado, criar uma ONG, fazer projetos etc; a segunda seria “paralela”, extorsões, chantagens e até pequenos furtos, por que não?

E o Cigano argumentou que deveríamos começar a cobrar taxas de todos, no âmbito legal, coisa que outras instituições fazem. Como exemplo citou o dízimo, começaríamos cobrando dízimos dos moradores de nossa sede. Chamei-lhe a atenção para o fato que aqueles pobres coitados já moravam ali antes de nós. Sabem o que ele respondeu-me? E os índios? Já habitavam Pindorama antes de ser Brasil? Quem ocupou e cobrou dízimos? Calei-me.

Continuou falando e citando exemplos. Disse que conhecia um instrumento chamado laudêmio que cobram de quem vai comprar terreno ou construir. Perguntei-lhe se era legal. Respondeu-me:

– Acho que sim, conheço uma cidade onde todos pagam sem reclamar, os cartórios aceitam, os vereadores nada dizem, todo mundo concorda que a igreja deva cobrar um imposto que, para muitos, tem mais valia que uma escritura pública, deve ser legal.

Juro que não sabia daquilo, achei estranho, mas...

O Cigano arrematou argumentando sobre a possibilidade de arranjarmos um financiamento público para conclusão do prédio que seria nossa sede. Achei que era demais e disse-lhe que não havia a menor possibilidade.

– Como não? Pois, fique sabendo, que lá de onde venho, o governo estadual está reconstruindo uma igreja que caiu pela metade. Ninguém se opõe, ao contrário, fazem até pressão para que as autoridades enviem mais verbas e agilizem todo o processo.

Argumentei sobre a importância histórica de algumas igrejas e que não era esse o nosso caso. Antes que ele pudesse replicar deu-se um pequeno alvoroço. Era o forasteiro, viera no faro, buscando tirar-me o sossego. Zé Pezão trazia-o sugigado pela gola. Mas, fui brando e mandei soltá-lo dizendo que o mesmo era inofensivo. Mal foi liberto, o infeliz falou:

- Eu sei o que está ocorrendo aqui. Você anda se escondendo por trás do nome de pastor para alimentar esta súcia que o acompanha. Um troca-tintas querendo explorar a miséria alheia, buscando locupletar-se com as mazelas do lumpesinato. Fornecendo o ópio da humanidade para quem chegou ao fundo do poço. Se existisse fogo eterno, nem assim queimarias. Pois tens frieza demais em tua alma. Vade-retro!

Bastou um meneio de mão para que Pezão e o Cigano o agarrassem pelos fundilhos e arremessassem em direção ao colchão de fezes. Então rimos desbragadamente.

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