26 de agosto de 2012
A Travessia do Umbral
GERALDO BERNARDO
Desde aquela segunda-feira – longínqua, estranha e radical – sou acometido por sonhos quase reais, por vezes febris. Certas ocasiões me ocorrem que são reais, parecem sonhos, lombras, sombras, sei lá!
Sóbrio, fui dormir as sete, preparava-me para viajar, rever o lugar onde viveu Vozinha. Sertão distante – cheio de redemoinhos empoeirados de julho – de tempo seco e pouca promessa de chuva. Precisava sair cedo, subir a Serra das Araras, ir à caverna, onde o professor Pachelli dizia ter não sei quantos anos, tempo difícil de mensurar nas engrenagens combalidas da memória. Foi pouco antes de meu batismo.
Ah! O cheiro bom da Serra, as vozes da Serra, rolinha caldo-de-feijão, um susto de espanta-boiada, borboletas burilando a paisagem e as garras do pega-pinto roubando-me os pêlos das canelas. Subo até a queda d’água, através do véu cristalino via-se um arco-íris. Pequenos macacos mordiscavam cocos, outros sagüis assoviavam chamando vento, num fino e comprido arrepio de espinha, tal como, sentir uma fugaz atmosfera varar seu corpo transparente, como um filete que escorre, a sensação, talvez, de quem respira pela última vez.
Num serpentear de veredas, deparo-me com um angico antigo, que tinha musgo no tronco, encosto-me e acendo meu charo. As minúsculas folhas mortas, ao solo apodreciamm no envelhecer dos tempos. Minha lança fere a terra e a formiga, meu golfar forma figuras deformadas, alucinadas. O ranger dos galhos inicia o acompanhamento de uma prece. Lentamente uma aranha tece e a cigarra alonga o assobio.
Sete gritos de anum, cadenciados, cada qual como um gemido, um lúgubre apelo, que martela, ecoando nas sete pedras dispostas num desenho misterioso. Sete sons ouço e não estremeço, obedeço aos sinais, “setenta vezes sete” como aprendi a decifrar. Agouro ou ventura não sei. Dou sete passos, como manda a tradição, observo a sombra de sete árvores, em busca da menor réstia é que rumo. Aprumo-me numa pedra ainda maior, avisto todo vale, sete vezes mais bonito que qualquer outro lugar. Uma ave azul, adoro esta cor, grasna, voa, faz piruetas em minha volta, ruma ao céu e continua seu grasnido, conto, às vezes, sete.
Abro os braços e me projeto com o chicote de vento na imensidão do abismo que me chama insistente para baixo, antes de saltar, porém, um bafo morno, úmido inunda-me completamente, estranho tudo em minha volta, arregalo ainda mais quando vejo o céu abrir-se em fendas, e, dele brotar labaredas vivas que avermelham a paisagem tão bucólica. Os bichos e os matos, todos, iniciam uma prece. Procuro falar e lamento não ter voz, mesmo assim, berro injúrias com a força do pensamento.
A luz que se projeta contra meu corpo é imensamente forte, arde, mas, não queima, inunda, desenha uma cruz com minha sombra projetada no rochedo íngreme, sinto flutuar, não enxergo nada, uma sucessão de ânsia de vômito e calafrios toma conta de mim.
Não sei por quanto tempo tudo existiu. Em mim, sei, muito tempo ainda existirá para lembrar o inesquecível. Acredito que tudo mudou ou está em mutação, tenho receio que o futuro não encontre aqui as formas que conheço, com este pensamento corro à caverna e começo a fazer desenhos nas paredes, meio tortos, toscos, rabiscados com sementes, com sangue, com folhas, vou fazendo desenhos de tudo que vejo, pois sei, o fim está próximo, não sei como sei de tudo isto, não sei como aprendi a desenhar, só sei que o fim está próximo, eu vi a Luz, eu a compreendi, a Luz... a Luz...
Acordei-me. Pouco dei contas de que a realidade voltara, não fosse o calor da seca real. Fui distinguindo o tempo, as coisas ao redor, meu quarto, a mochila pronta ao pé da cômoda como testemunha de que, eu ainda tinha que subir a Serra das Araras.
Na dureza de um banco de virola sentei-me. Quando a C10, movida à botijão de GLP fez seu gemido mecânico e desandou a correr, sacolejei entre baixios e carrascos, ziguezagueei pela caatinga rala, foi não foi via um preá entocar-se, engasgado com a poeira da estrada. O café forte no estômago vazio subia até a garganta. Que sufoco! Mas, este caminho duro trás uma visão de glória, a Serra das Araras ou Serra Branca.
Estava só, subindo a Serra, com minha câmera, filmando a terra, avistei uma lúgubre carcaça de umburana, hibernando na paisagem estorricada. Encostei-me no antigo angico, observo sua casca antediluviana, uma mancha (talvez musgo) negra em seu tronco, uma pedra como trono, sentei e apertei o mingote, tudo parecia-me muito familiar.
Saí como um autômato, alucinado, entre seixos, carrapichos, palmas e xiquexiques. Olhei acima, rumo ao matacão de onde poderia armar meu equipamento de rapel. A larica começou a incomodar, tomei água e ao voltar a vista, vi, num lampejo, um caminho recoberto por touceiras secas e juremas que resistiam ao sol inclemente.
Minha intuição mandou, então segui, a trilha era antiga o medo era novo. Observei a paisagem ao longe, fotografei, escutei o silêncio das dez horas e descobri a entrada da caverna.
Iluminei as imagens rupestres, com a lanterna do aparelho celular (que sacrilégio), noutras eras, Indianna Jones usaria uma tosca tocha. Vi desenhos de gentes, bichos, matos, todos feitos de uma maneira tosca, infantil, desaprumados, avermelhados, enegrecidos, como se fossem feitos por algum artista apressado querendo dizer alguma coisa.
Busquei sair o mais rápido daquele ambiente claustrofóbico. Em busca de ar, quase correndo, rumei em direção ao platô. Soltei a mochila, agachei-me, mirei ao longe, muitas visões tomaram conta de mim. Vi-me, como num filme, rabiscando aquelas mesmas paredes, como no sonho.
Naquele dia, no topo da Serra das Araras, desisti da vida profana, busquei ser um resignado servo da Luz. Eu vi a cruz, cravada na pedra do platô, duas manchas que se cruzam – meus braços abertos – sombra de meu corpo projetado na rocha. A Luz que resplandeceu em mim, tal qual refulgiu no penedo.
O real é a Luz que irradia. Onde há trevas o fim triunfa. Vejo pouca claridade no futuro, eis a razão, uma delas, pelo qual eu sigo a Luz, para dizer a este mundo caótico que o fim está próximo, eu sei, eu vi a Luz... a Luz...
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