30 de setembro de 2012
Inocente, puro e besta!
GERALDO BERNARDO
Meu encontro com as palavras foi acometido de vários enigmas e deslumbramentos.
Menino, fui criado entre os “prumode” e coisas e tais, estava acostumado ao falar rasteiro e dengoso de quem é habituado a dizer “astrodia” ao invés de “outro dia”, para economizar palavras. Pois, nos sertões, faltou chegar a irrigação do saber, noutros tempos.
A palavra pizza chegou-me embrulhando sabão. Num anúncio (que na época eu nem sabia distinguir) do jornal de feira. Aquele sabão me deixou maravilhado, era uma coisa verde, cheirosa, para quem só conhecia sabão preto, feito com a “fuçura” e a “gordura ruim” do porco.
Era vozinha quem fazia. Fervia, mexia, não deixava ninguém chegar perto, depois moldava aquela bolona, preta, fedorenta o que ajudava dar forma era farinha de mandioca.
Pois bem. Impresso em letras garrafais, na ilustração, o desenho de uma família feliz em volta de uma mesa, não era do meu universo, soletrei com dificuldade: PRO-MO-ÇÃO, RO-DÍ-ZIO DE PIZZA (não lembro agora os preços).
Fiquei fascinado! Já corri fui pegar um “trinchete” e cortar um pedaço. Queira provar, saber o sabor, sentir a textura, entender o motivo do riso daquelas pessoas comendo esse tal de... pizza? Pisa eu conhecia muito bem, era sinônimo de surra.
De posse do afiado instrumento, salivando tal canídeo de Vygostky, ia levando à boca aquele naco suculento e perfumado, quando, minha vó ralhou comigo:
- Mais será o impossível. A gente não pode dar as costas. O que tu ta querendo com isso praga ruim? Comer? Onde já se viu, ente sem futuro, comer sabão? - e foi dando safanão na minha mão, tomando o trinchete, guardando o sabão, tudo ao mesmo tempo e, sem baixar o tom de voz – Vá! Chispe daqui, antes que eu lhe dê uma pisa.
Como assim? Não era uma pizza que eu estava querendo?
Eram as letras entrando desordenadas no meu quengo de dez anos, de tanto perguntar, como um dom, de tanto juntar, bê com a, bê-a-bá. De ouvir Fransquinha cantar “velso”, olhando aquelas letrinhas manchadas de preto num livrinho pequeno que vez por outra aparecia, em dia de feira.
Passei anos sem saber o que era a tal pizza, até o dia em que conheci um dicionário. A partir de então fucei de A a Z. Mesmo assim não escapei de alguns constrangimentos, pois, conhecia a palavra, mas, sem compreender o todo, o costume, como absorver esta cultura burguesa que a cidade me impunha?
Rapagão, tinha quase quinze, quando ouvi Quinzinha (que eu tanto amei) conversava com Quequé:
- Hoje não! Tô de bode.
- Ah! Tá! Então vou sair por aí, com os amigos.
- Já sei, vai procurar tuas quengas não é?
- Não é da sua conta. – Disse Quequé, já montando na sua possante bicicleta do ano – Monark, barra forte, circular – e indo embora sem ao menos olhar para trás.
Quinzinha era mais velha que eu uns dois anos, ia fazer dezessete, linda de morrer, vivi cego por ela muito tempo. Quase morri “esfraquecido”, dizia vozinha, quando me surpreendeu empunhado lembranças e homenageando as curvas de Quinzinha.
Naquela noite, num pé de calçada escura, quando Quequé foi embora, cheguei-me pra Quinzinha e perguntei-lhe:
- Como é ficar de bode?
Quinzinha arregalou os olhos, soltou uma “gaitada” e sacudiu aquele cabelo que a deixava ainda mais gata.
- Sabe não?
Também ri, devia ser muito interessante, embora bode fosse, para mim, o masculino de cabra, mas, com uma risada daquelas, só podia ser uma coisa interessante, uma festa... enfim, o que diabo era aquilo.
- Sei não... você me diz...
Quinzinha olhou-me, quase tremi, com as mãos em conchas, cochicou-me:
- É quando a mulher tem que usar “Modess”.
- Ahhh!!!
- Entendeu?
- Entendi!
- Entendeu mesmo?
- Claro!
- Eu gosto daquele é que aderente a calcinha sabe?
- Sei.
- Então, amanhã, me compra um pacote? Tô cansada de usar pedaço de toalha velha
- Certo.
Como eu estava completamente por fora de tudo, resolvi dar uma desculpa que ia dormir. O que eu queria mesmo era pesquisar o que era aquilo.
Segui ruminando palavras: Modess – aderente – calcinha.
“Que praga é tudo isto? Será perfume? E só mulher é que tem? O que será”? E a toalha? Serve pra quê? – as perguntas não saíam de minha cabeça. Procurei todos os significados, as palavras não se encaixavam. Não respondiam a pergunta principal. A que servia uma coisa que ficava ligada à calcinha? Pensava eu, que era externo, pra perfumar, sei lá.
“Acho que Quinzinha ta me dando bola, isto é desculpa pra aceitar presente meu e deixar de vez aquele besta de Quequé” Fui dormir com mil pensamentos. Sonhei sendo motoqueiro de jaquetão com Quinzinha na garupa, Quequé empurrando a bicicleta com pneu furado, Quinzinha super perfumada com Modess, mas eu não podia ver, estava aderente à calcinha.
Fiquei sem entender um bom tempo. Quinzinha arribou pra São Paulo, carregando Tião, marido de sua irmã. Chorei de desgosto sem ao menos lembrar-me do perfume do Modess, tanto era o ódio por Quinzinha.
Só descobri que mulheres menstruavam quando tinha meus dezenove anos. Fiquei deslumbrado e encabulado. Ainda bem que Quizinha perdeu-se no oco do mundo para não tripudiar de minha inocência.
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