9 de setembro de 2012
Vida e metalinguagem na poesia de Linaldo Guedes
AMADOR RIBEIRO NETO
As facilidades de publicação, principalmente via Internet, têm feito proliferar o número de “poetas” mundo afora. Mesmo em livro impresso há um considerável número deles, quase sempre com o rei na barriga e letra de caixa-alta. Viajando pelos congressos, acadêmicos ou não, ou mesmo recebendo pelos correios, os livros destes “poetas” me chegam de forma quase avassaladora, sempre me cobrando uma opinião, “com certeza”.
Isto tem me causado um desânimo muito grande em relação à produção poética contemporânea brasileira. Claro, há nomes fortes e consolidados, dos anos 90 para cá, mas é difícil, principalmente na última década, destacar um nome novo que mereça realce pela qualidade de sua poesia.
Há vários deles, que surgem num livro gerando alguma expectativa, mas que logo se dissipam, como sal na água, no livro seguinte. Fazer poesia não é nada fácil, ao contrário do que propagaram os “poetas marginais” dos anos 70 e 80 – e que, infelizmente, devido ao desprezo pelo rigor da escrita, fizeram cabeças afoitas que hoje proliferam nas redes sociais e em grupelhos provincianos.
Faço esta breve introdução para falar de um livro (e de um poeta) que, desde a a primeira publicação já se apresentava como uma “promessa”, mas que, no geral, ainda se mantinha preso aos maneirismos poeticistas dos que se aventuram na “the waste land” da poesia. Refiro-me a Linaldo Guedes.
Como eu apreciara quase nada Os zumbis também escutam blues (1998) e muito pouco o Intervalo lírico (2005), foi mais por dever de insistir na “promessa” deste jovem, que li Metáforas para um duelo no sertão (2012) – convenhamos, pouco sugestivo desde o título.
Um parênteses: não costumo investir em leituras de autores que não despertam meu interesse como leitor e crítico. Mas no caso de Linaldo Guedes, repito, havia algo (a Coisa lacaniana?) que me cutucava por dentro: embora sua poesia não me agradasse, havia um fazer poético – em raros momentos, diga-se – que me instigava, me inquietava, me fazia crer que valeria a pena continuar investindo em lê-lo.
Guardadas as devidas proporções, havia uma semelhança entre o fazer poético de Linaldo e o de Mário de Andrade – este último morreu sem saber qual era de fato a da poesia. Na poesia marioandradina há poemas bons e ruins, o tempo todo, em todos os livros. Isto é comum. É mesmo inevitável, posso ser objetado. No entanto, esclareço: no caso de M. de A. a poesia sempre foi manca de uma perna, nunca alcançou a grandeza sólida e marcante de sua prosa.
Todavia, não há como ignorar a poesia de Mário. Não há como desconhecê-lo, enquanto poeta, na rica cena da poesia brasileira de todos os tempos – e não apenas modernista.
Linaldo Guedes produziu em Metáforas para um duelo no sertão uma obra que nos surpreende, ao mesmo tempo em que confirma nossa “intuição”: eis um livro de muitos poemas bons, alguns excelentes, e meia dúzia que não precisariam constar dele. Estes são aqueles que jogam com os trocadilhos mais previsíveis, muito fáceis, quase sem elaboração poética. É o caso de “Parabolicaleitura” (feliz no título gilbertiano) (p. 112):
as casas sustentam antenas
eu vi
fossem antenas poundianas
eu não via
EU LIA:
(as antenas globalizam novas raças).
Em “Lombra...” ele encerra o poema com este baita clichê: “(perdidos em nossos achados).” (p. 81). Com o mesmo recurso ele encerra “Primeira confissão”: “(como é bom ser livre para pecar!).” (p. 53).
No entanto, o trocadilho é uma das chaves mestra deste poeta. Em vários casos ela é tão inovadora que o poema nos aparece como algo inusitado. Como, aliás, deve ser todo bom poema: um poema dever ser lido como se o tivéssemos vendo pela primeira vez, embora trate do costumeiro, observou certo semioticista russo. É isto que Dante faz com o Amor, por exemplo. Ou Shakespeare, com o Poder. Ambos os temas, velhos conhecidos. No entanto, na poética destes dois grandes nomes, é como se cada um destes temas nos fosse revelado pela primeira vez. Isto é fazer poético. E Linaldo o faz com propriedade em alguns poemas.
Só isto vale o livro. Nos últimos anos não lia algo tão arrebatadoramente sensível e simples. Ocorrem-me os nomes de Frederico Barbosa, André Dick, Paulo de Toledo, Saulo Mendonça, Lau Siqueira, Delmo Montenegro, Claudio Daniel, Ricardo Aleixo, Arnaldo Antunes, Rodrigo Garcia Lopes, Carlos Ávila, Ronald Polito e Ademir Assunção a quatro mãos com Vicente Pietroforte. (Glauco Mattoso é hour concours).
A simplicidade da poesia de LG despe-a, por exemplo, do ritmo forjado ao qual os “poetas” contemporâneos subjugam a “poesia”, comendo mal a rédea curta da dicção drummondiana. Em Linaldo a coloquialidade vem atrelada a uma musicalidade da fala do homem simples – se sertanejo ou não, veremos adiante. Sua poesia deriva desta naturalidade. Mas não se pense que a naturalidade é a dominante da poesia linaldina. Nem que esta naturalidade seja o mesmo que relaxo ou desarrazoado. Pelo contrário: seu simples é cavado por um rigor admirável, já que não mostra os pilares que erguem a casa da linguagem.
Um rigor que serpenteia pelos modos mais diversos da linguagem “carregada de sentido” a mais não poder, como pondera o célebre poeta-crítico norte-americano. Lê-se a poesia de LG com a voracidade que os versos pedem – e o livro é devorado em pouco tempo.
Ou lê-se com o compasso zen do silêncio do sertão, e então o livro não acaba quase nunca. Porque não o deixamos acabar. Queremos beber de sua rara água. E os aborrecimentos com um ou outro poema, como já dissemos, dada a dimensão estética do livro, o leitor tira de letra.
As metáforas utilizadas são bem menos abundantes do que sugere o título. O duelo no sertão é mais ontológico que qualquer outra coisa. O que se diz do sertanejo é inerente a cada ser, e a todos, quem sabe. Antonio Mariano inicia o prefácio falando de Tolstoi e a célebre citação da aldeia e do mundo. Busco ir além: o sertão é o Dasein heideggeriano: investiga-se o ser, seus modos de ser e sentir, independente da geografia que o cerca.
Por isto mesmo o poeta eleva o silêncio do sertão como uma das figuras recorrentes de sua escrita: toma-o como mote que tanto mata quanto dá vida a um eu-lírico em desespero ou em paz. A vastidão do silêncio ecoa num movimento zen de sua poesia assim como coabita o chocalho melancólico de um gado “perdido” no espaço da seca, como no poema “Curral” (p. 52), citado adiante.
Correlato do silêncio é o sorriso “para o nada” das meninas do sertão (p. 57), por exemplo – imagem repetida em “Primeira infância” (p. 37) que se abre assim: “os meninos do sertão / já nascem sorrindo para a rua”. O sorriso/silêncio conforma o binômino recorrente ao longo do livro – e que, convenhamos, descreve o / disserta sobre o sertão às avessas. Principalmente se tomarmos como referente a literatura regional dos anos 30, ou a posterior, presa a estereótipos de um olhar viciado.
A seca oscila da acidez cabralina ao esperançado natalino. Mas não é da festa dezembrina que o poeta fala, e sim do natalino relativo à geografia do nascimento. Nada de místico ou religioso: apenas o cotidiano, que eu nomearia reles, não fosse ele impregnado pela poeticidade da linguagem das palavras mais comuns, aqui referidas com a beleza do imprevisto. “Natal é meu pai”, “natal é minha mãe”, “natal são meus irmãos”, “natal é você” diz ele dez páginas depois de iniciado o livro e retomando o tema “do natal”.
Agora a família, e a (possível) amada formam a guirlanda diária das relações interpessoais. A família é um núcleo duro (no sentido semiótico da expressão: predominância e concentração de sentido) deste livro. À p. 110 ele diz: “não estou sempre presente ao meu filho / e nunca, mas nunca mesmo, / consigo agradar a sombra de meu pai”. Antes, à p. 62 ele fala uma vez mais do pai, dos dois irmãos, da paternidade distribuída entre os irmãos e, por fim, da paternidade tardiamente compreendida pelo eu-lírico.
A presença ausente do pai, a falta de uma orientação, o apartamento de um poder e de um amor paternos cravam marcas de perplexidade num menino-homem (ou, na feliz tradução de Augusto de Campos para certa expressão de Lewis Carroll: homenino), e vazam o livro sob dissimulações variadas. Como no poema “Quimera” em que a felicidade é sem história (diria: é a-histórica), não fosse a condolência de “o menino que chora no último banco de lorca”. Lorca e tantas outras referências literárias povoam o universo deste filho sem pai, deste pai sem paternidade, como se a literatura pudesse suprir a falta que a vida nos traz.
Falando em vida, a religião – o traço determinante do sertanejo (e quem sabe de todo sertão) – aparece com sua liturgia invertida: ora por um olhar descritivo, embora não esconda laivos de fina e distante ironia, (“não era a serra da rola / moça / era a serra de santa luzia / abençoando o seridó”, p. 56), ora pela erotização, à la Adélia Prado, quando a quaresma se torna o tempo da “negação do jejum de prazer”. Quer seja: a linguagem na forma negativa firma-se como a expressão mais contundente da asserção gozosa.
Com “Matraga” (p. 21) o “carrego” do personagem roseano une-se ao do eu-lírico numa oração de entrega, despedida e aceitação. E aqui o que era inversão converte-se em afirmação: ressonâncias polifônicas de um homem que é mais que um, mais que cem, mais que 350: são as vozes bakhtinianas que cada um carrega dentro de si:
matraca silenciosa
liturgia de augusto
remoendo
moendo
doendo
moenda
- bagaço de homem no altar dos sertões
de repente, a hora chega
pai, filho e espírito santo
agora só quero rezar
e carregar os meus carregos.
Todavia, a religião é questionada com uma ponta de ateísmo no soneto “Mater” (p. 41), cuja figura materna nada tem de divina: “aquela nossa senhora minha” é uma síntese admirável do que poderia ser mítico mas de fato é fonte concreta de “minha tosca alegria”. À fé que maravilha, a constatação crua que faz doer “nos olhos de minha querida mãe”.
O prazer leva o poeta sertanejo a ser satânico, além de erótico, marcado às flores do mal: por isto mesmo sua erva daninha, seu capim caprino (ou bovino) é baudelaireano. Sua alma se alimenta da antepoesia. Mesmo sertão adentro, o campo que se abre é o urbano: bordéis, cinemas, a capital, etc. E neste universo plurissignificante, algumas vezes a chuva de intertextualidades é tão avassaladora, como em “Belle de jour” (p. 31), que o poema resvala para o nonsense.
não, não é catherine
de novo em busca de bordéis
para saciar a sede secreta de buñuel
é juliana, sim,
bela na tarde cajazeiras;
bela na tarde capital
remake do que ainda está por vir:
surrealismo cinematográfico
- quadro de dalí em rascunho eterno
juliana, que caminha nas tardes,
inconscientes
de sua beleza,
em primeiro plano, seu sorriso
no the end, o silêncio e o sertão dialogam
Para que o litoral reverencie suas maçãs secretas:
ela, protagonista de um filme de Almodóvar.
Por outro lado, isto também seja dito, há poemas que detém uma concisão admirável, reunindo em poucas imagens uma somatória rara e rica de significados. É o caso de “Os ferreiros”, um poema oswaldiano no largo simples da caatinga (p. 35). Ou “Salieri” (p. 113):
no brilho da lâmina
só o corte do olhar
Ou “Livro aberto” (p. 43):
ser tão
abstrato
quanto
as
águas
do
meu
sertão.
Ou “Curral” (p. 52):
- nunca consegui entender
a melancolia que ecoava
nos chocalhos das vacas!
Sem escapar dos laços de família, o sertão é outro núcleo duro do livro – este, desde o título do volume. Tal como no sertão graciliano ou roseano, a dimensão geográfica, histórica e social transcendem a etimologia do vocábulo e imergem o leitor na esfera daquilo que o eu-lírico chama de “metáfora”, mas que é, na verdade, mais que uma relação de semelhança e figurativização entre dois signos. O sertão aqui é fenomenologia. É essência. E ao se revelar assim, desprovido de dissonâncias e dissimulações, traça um arco órfico que vai, por exemplo, da dor melódica da zabumba, do triângulo e da sanfona à dor da guitarra elétrica e das melodias estrangeiras.
O sertão é o mar ressignificado pelo homem e no homem. No longo “Mário de Andrade visita o Sertão” (p. 47), o eu-lírico revisita Mário numa teia de intertextualidades cosendo o universo poético e a biografia marioandradinas, tendo sempre como horizonte a linha imaginária do sertão. Ou o imaginário do sertão, melhor dizendo. Seguido do refrão: “ninguém lê mário de andrade”. Esta constatação-protesto, marcadamente musical, sustenta e complementa-se em outra: “(carro subindo descendo / deixando mário na poeira / buscando oswald no horizonte / (avante!!!))” (p. 56).
Ilude-se enormemente quem crê que o poeta oponha ou prefira um modernista a outro. Linaldo Guedes sabe que, antes de tudo, antes de mais nada, a morada da poesia não tem proprietário exclusivo. Não é de Mário. Nem de Oswald. Nem de ninguém.
A poesia de LG é cheia de vida, de biografias, de autobiografia. Mas é plena também de metalinguagem, a grande questão que a Pós-modernidade soube resgatar da Antiguidade Clássica. A poesia (sempre) como questão em aberto, gera desassossego na alma do poeta. Ele quer ousar mais. Quer que a palavra seja mais concreta – melhor dizendo: ele busca a solidez da palavra ante a liquidez do amor. Esta materialidade da palavra não esconde, em LG, o medo que habitou a criança e que hoje habita o adulto de Metáforas... E assim, o medo converte-se na moeda de troca que, de sopetão, abre espaço para o erotismo.
Um erotismo cru. Um erotismo dissimulado.
Quando cru, estabiliza-se na descrição do objeto sexual ou do objeto investido de sexualidade. É o caso do palato tomado como extensão do pênis. O que não deixa de ser curioso, já que o palato tem mais proximidade física com o útero e com a vulva do que com o pênis. Algo do universo masculino “se perdeu, está se perdendo”, para parodiar a canção popular. Ou quem sabe, algo do universo masculino esteja se transformando e indo para além do estabelecido.
O erotismo cru continua na conversa do eu-lírico com um duende que está pousado sobre seu pênis. Uma situação, no mínimo, inusitada, num primeiro momento. Mas que resgata a criança e o adulto vivenciando a fantasia da “maçã do paraíso”. Maçã podre, segundo o poema. Quer seja: agora não é o místico, mas o mítico que é devorado às golfadas pela ironia.
O erotismo cru se alista em versos como “ :sementes plantadas nas tuas pernas turvas / :sêmens a escorrer por entre pelos e curvas” onde a rima fechada na vogal tônica /u/ intermete a libido no lado mais recôndito do corpo feminino (“Uvas”, p. 76). E converte-se em indagação sarcástica em “Singular” (p. 79) quando a luva toma o lugar da vulva. Aqui mete-se a mão através do anagrama, o que materializa ainda mais a acidez do poema em forma interrogativa – provocando o leitor pelo vocativo direto: por que ficar com a genitália feminina se se tem o objeto industrializado com a mesma cavidade e à disposição dos mesmos dedos? Vejamos a íntegra do poema:
Apenas uma:
Se tu, luva,
Se encaixa em minhas mãos
Por que procurar outra vulva?
O erotismo delicado, lascivo e sensual está, por exemplo, no terceto “Posse” (p. 78) em que a vassalagem feudal dos dedos se apossa da pelve, zona erógena onde dançam desejos masculinos e femininos em volteios de sexo sem fim. Os dedos, vale frisar, são o depositário do erotismo deste eu-lírico: ora para fazê-los percorrer vulvas e luvas, ora para serem chupados com o sabor da amada de cujas entranhas sai o “prazer da glicose”. Os açúcares da moenda do amor adoçam a carne do homem e o imaginário do menino. O “homenino” também se projeta na arquitetura do sexo: “Menino do engenho”, p. 86:
passar a tarde chupando meus dedos com teu sabor,
feito rolete de cana,
com uma diferença:
o bagaço, aqui, tem cheiro de orgasmo
moenda que mói e mói nossos ardis
- engenhos de desejos para senhores dos tempos de antanho
(como se tudo fosse estranho,
alheio ao próprio prazer da glicose que sai de tuas entranhas).
Ou no drummondianamente resolvido “Amém” (p. 91):
amor quando chega
não faz toc, toc, toc
simplesmente derruba a porta
invade nossa aorta
transforma o amador
na coisa sagrada
depois, ora pelo santo espírito insano
para que todo dia, todo ano
a oração se repita
com suor, sexo e libido.
“Cunilíngua” (p. 95) desenvolve-se como um caso de erotismo cru, mas, no último verso, é encharcado por uma sensualidade arrebatadora. O que vinha se configurando como descrição “cerebral” de um coito, desdobra-se em “flores e rosas para minha língua”.
O universo feudal volta com força em “Usucapião” (p. 101) cujos versos de ritmo marcadamente acentuados, trançam a trama da língua no corpo da amada. Uma curiosidade: este poema, encerra-se com o adjetivo “gris” – que não sabemos se se refere à maturidade do amante, da amada ou de ambos. Na verdade isto pouco importa, já que conduz o leitor para uma reflexão densa, quem sabe a mais cerrada do livro: a que fala da morte.
Embora presente em apenas dois poemas (não por acaso os que encerram o volume), a reflexão sobre o autoenvelhecimento e a morte anunciada (“Partida”, p. 135) e a hora final, é louvada pelos anjos – um de seus anjos, sabemos por outros poemas, é Augusto. O eu-lírico se despede sob o consentimento da poesia (“Dostoievskiana”, p. 136):
Os ganchos
Já estão
Me levando
Os anjos louvam: é hora de dormir.
Este eu que discorre sobre a inevitabilidade da própria morte, e que a assume com desprendimento e leveza de ser, também vive a vida muito à vontade. Em “Auto-ajuda” (p. 129) reúne, no mesmo poema, Cortázar e Paulo Coelho – como a dizer que a arte e a vida de auto-ajuda não se distinguem. Esta confortável mobilidade de ser o que quer reaparece na reabilitação do surrado lema guevariano em “Sem perder a ternura” (p. 131).
Metalinguístico, não perde oportunidade para pôr em cheque tanto o ato de criação poética como a eficácia de sua linguagem no rol da práxis cotidiana. “Poética” (p. 92) é uma sonora e visual declaração de amor a dois cantadores tão distantes no tempo e como próximos na irreverência lírica: Rita Lee e Rimbaud:
poeta é bicho esquisito
todo mês sangra
(versos)
e aduba loucuras
vermelhas
com frases azuis.
A metalinguagem se introduz também em “E-book” (p. 67), poema feito nos moldes borgeanos: fusão da realidade com o imaginário. Se retomarmos o título do poema, aí sim, caímos de vez na cibercultura virtual – e a dimensão do poema ganha maior verticalidade. O que se contrapõe à busca das “sólidas palavras” de “Das vontades de um homem” (p. 65). Aliás, este movimento de afirmação e seu oposto (negação ou agnosticismo) percorrem a poética de Linaldo Guedes em Metáforas..., do início ao fim.
Ele é um poeta que não introduz um sertão (pré)configurado, nem um amor monogâmico, nem uma poética estruturada na cartilha de procedimentos didáticos ou em manuais da moda. A diversidade é que dá o tom de unidade ao livro.
Talvez agora entendamos melhor o sentido da palavra “duelo” contida no título do volume. O eu-lírico se debate entre a vida e a (meta)linguagem, em cada página, em cada verso, em cada palavra. Há um esmero em construir-se um livro leve e denso, generoso no número de páginas, e ao mesmo tempo sintetizado na elaboração das imagens, dos ritmos, das ideias.
Um livro em que a metáfora está presente mais no título do volume que na feitura dos poemas. Felizmente o poeta soube evitar esta e outras facilidades tão comuns nestes tempos de “poesia” à mancheia. “Poesia” de “poetas” que encontraram na facilidade do teclado do computador, na divulgação da Internet, ou em editoras pré-pagas um modo de expor suas sandices, suas ignorâncias acerca da produção poética – tanto canônica como contemporânea.
Linaldo Guedes, com Metáforas para um duelo no sertão revela-se, na grande maioria dos poemas, um poeta maduro, desbravador da linguagem da poesia, íntimo da produção de grandes poetas e prosadores. Considere-se, para encerrarmos, “Entre o rio e o mar” (p. 17):
tem semanas que acordo janeiro
versos feitos cabral
seco ácido sertão
lâmina e pedra na poesia
galo escondendo a manhã
dias em que custam suores
recordar outros valores
lembrar dos asfaltos de jambeiros
andar pelas ruas, jaguaribe
: há que sempre mirar adiante
nadar nada no capibaribe
colhendo feijão e poemas
lá na cozinha da casa grande tão pequena
tem semanas que me fixo em junhos
versos vêm de vinícius
solto louco sezão
sonetos infiéis em minha castidade
elegias e sempre um grande amor
dias que valem suores
vale o hoje, o agora, vale o já
cajazeiras é só uma página e saudades
outras ruas outros olhos outras cores
madalenas e seus códigos secretos
mergulha poesia tambaú
- plantar sonhos e fantasias
no quarto, onde deve ficar minha pequena
tem semanas e dias dezembro
onde espero, só nos livros
: é natal, temos de recomeçar.
Metáforas para um duelo no sertão instiga o leitor a esperar pelo próximo livro de Linaldo Guedes.
O livro “Metáforas para um duelo no sertão”, de Linaldo Guedes, pode ser adquirido no site da editora: www.editorapatua.com.br
AMADOR RIBEIRO NETO É POETA, PROFESSOR DA UFPB E CRÍTICO LITERÁRIO. O TEXTO ACIMA FOI PUBLICADO NO CORREIO DAS ARTES
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