9 de setembro de 2012

Terapia do desapego


GERALDO BERNARDO

Vez por outra tenho desvios, sem perder o foco da missão, tomo atalhos. Falo de coisas que os humanos podem fazer para contemplar, aqui na Terra, o reino dos céus. Aleluia!

Comprei baterias novas para o megafone novo. Sempre é bom investir em equipamentos, mesmo que seja despojado, como manda o disfarce, precisa ter qualidade. Cansado de ouvir reclamações, insinuações e outras besteiras mais, fui à rua, nunca mais havia feito, de língua afiada, postei-me frente ao relógio do Alecrim e disparei:

- Irmãos! Falo para os que ainda não perderam a fé. Aqueles que buscam uma bóia qualquer que vos salve do naufrágio que o cotidiano lhes oferta. Amem? Se há dor em vosso caminho, menosprezo, preconceito, vício ou qualquer outro mal moderno que vos cause desalento, se realmente há em vossa estrada uma destas pedras, vos digo, acalmai vosso espírito e contenha a fúria, pois, só o desprendimento total, o desapego de si mesmo, fará com que retornes à condição de primitivamente humano. Glória! Glória! Glória! Falo do desapego como terapia. O tempo, que entrega ao demônio, recicla-o. Existem inúmeras tarefas a serem feitas. Que tal podar uma árvore? Alfabetizar uma turma de adultos pode ser uma tarefa de desprendimento e aprendizagem muito grande. Se realmente queres reclamar de algo, faze-o, mas, pesquise antes o assunto, informe-se, procure a repartição, converse com a autoridade, ocupe o tempo que fica no boteco em algo mais produtivo. Salve Iroco. Aleluia! Digo mais, irmãos! Digo que está salvo todo aquele que doa um pouco de si. Seja engenheiro, advogado, pastor, padre, prostituta, padeiro, policia, político, podendo participar pela prosperidade plena, protegendo, principalmente, o pequeno - Oh! Glória! – está salvo quem assim procede.

Trocam-se olhares curiosos no entorno, cúmplices de ouvidos atentos às minhas palavras. Observo contidos risos debochados, comentários sussurrados para dentro, uma dezena e meia de feirantes no início da manhã. Ônibus apinhados vão passando e as “tarimbas” do camelódromo arreganham-se, mostrando suas obscenidades chinesas e paraguaias. Executo uma panorâmica da esquerda pra direita e volto lentamente, fotografando cada expressão, memorizando o colorido, gravando o odor das cozinhas dos barracos, o cheiro de óleo diesel e gasolina, o burburinho dos que aguardam na parada – “O 58 demora mais de uma hora”; “Será que passa na Bernardino Vieira?”; “Sei não, viu! Ouvi dizer que os estudantes vão quebrar tudo” – enquadro bem a esquina, Seu Cosme acabou de chegar, agacha-se, já carcomido pelos “mais de setenta janeiros”, abre os “quase cem cadeados”, e, com a prática de anos, ergue-se junto com a “porta de rolo”. Xi! Acabou sossego, chegou o vendedor de CD pirata, agora começa a zoada.

Tomei um pouco de água e preparava-me para retornar a pregação quando chegou o “58”, apinhado, dando solavancos e arrancadas, para saciar o sadismo do motorista. Como se não bastasse a visão claustrofóbica, os irritantes alto-falantes do pirata urbano começaram a incomodar. Desceram poucos, muitos se comprimem, a porte vai fechando, impedindo que outros entrem, o motorista arranca, quase leva o pé de um trabalhador que não conseguiu subir, duas moças vêm correndo e acenando do outro lado da rua, o motorista faz de conta que não as vê, alguém buzina, finge que não ouve, parte buzinando pragas pela urbanidade caótica. Ergo o megafone, antes de falar, ouço:

- Galera! Vamos dar um tempo aqui na praça, enquanto toma uma decisão, tá valendo? – descendo a Amaro Barreto, uns cento e pouco estudantes, liderados por uma garota magrinha de cabelos longos, rosto de menina e aparelho nos dentes, fala em um megafone mais moderno que o meu.

Já vi que não vai dar certo. Dois megafones e os alto-falantes do espertalhão dos CD’s, nem mesmo a Gentil Ferreira para caber tantos decibéis.

- Irmãos! – ensaiei, apenas.

- Companheiros! – Era a líder magrinha dos estudantes.

Coincidência ou não, nos olhamos e ouvimos juntos “chupa que é de uva”, quase estourando os tímpanos que vinha do camelódromo.

- Irmãos! Trago uma mensagem de conforto para a alma agitada. Uma terapia que livrará o irmão ou a irmã de qualquer estresse, que irá amenizar o fardo do teu cotidiano. Escutai bem, irmãos, escutai! Ajudem a este pobre servo, construir o caminho do paraíso na terra. O pouco que tens poderá ser o muito daquilo que outro necessita, para desencargo de consciência livra-te deste peso, faça aqui sua doação, pois, tudo que é doado a Deus, servirá para aquele irmão mais necessitado, aquele que nada tem nesta vida, só tem a Deus. Glória! Glória! Glória! Na terapia do desapego, você descarrega toda sua culpa num donativo, qualquer quantia, dois reais, vinte e cinco centavos, do tamanho da mácula que teu coração arbitrar, serás o juiz e julgado de teu próprio deslize, pois, Meu Deus é de confiança, confia em ti, na tua consciência, amem?

Nisto, a espevitada da estudante foi se chegando, sem mais nem menos e foi falando:

- Isto que o senhor faz é crime, sabia?

- Sei não, minha filha, falo da mensagem de Deus!

- Na minha terra isto é outra coisa.

- Sangue de Cristo tem poder.

- Tem mesmo, agora o senhor está roubando a consciência das pessoas, sabia?

- Jesus tem Misericórdia.

- Eu sei que tem, mas não terá do Senhor.

- Jesus te ama.

A medida que devolvia com palavras sagradas os insultos daquela garota, ela ficava com expressão de ira. Foi se aproximando de mim, de seus olhos chispavam raios de ódio. Comecei a temer do que seria capaz de fazer, como enfrentar aquela mocinha que começava a irritar-me. Mas, Deus é grande. Sempre! Sempre! Sempre! Deus preparou-me a solução para sair daquele precipício: a chegada do “58”.

A garotinha vinha que vinha pra cima de mim, questionando minha fé, quando um rapazote magrelo avistou o ônibus, gritou:

- Wilyane, “vamo” ocupar!

Foi a palavra de ordem. O veículo mal estacionou, ela o invadiu e em seguida foi entrando estudante, por cima da roleta, pelas janelas, na porta de frente ou sentados nos batentes, seguiram protestando contra o aumento das passagens!

Fiquei com minha pregação, ainda tinha que vencer o cara da mídia barulhenta, mas, em pouco eu venceria. Não tenho problema para pregar a palavra, sempre venço, seja onde for que estabeleça meu ponto, tenho um forte aliado, a palavra e vontade Dele.

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