Clemildo Brunet
“E o destino que a tudo assiste vai sorrindo dos tristes acertos; ele sabe que a vida consiste numa saudade a mais, numa esperança a menos”. Trecho de uma canção popular interpretada pelo Cantor das multidões Orlando Silva gravada em 1938, composição de Silvino Neto e Carlos Moraes, que me fez lembrar no começo desta semana, prestar uma homenagem ao Cineasta e Jornalista Linduarte Noronha, falecido na última segunda feira, 30 de janeiro, Dia da Saudade.
Considerado o precursor do movimento cinema novo Linduarte Noronha, embora Pernambucano nascido em Ferreiros, por adoção paraibano, amava o nosso Estado, é tanto que fixou residência há muitos anos em João Pessoa, nossa capital. A geração cinema novista teve caminhos estéticos apontados pelo cineasta de Pernambuco, quando seu nome ficou registrado nos anais da história do cinema nacional em 1960, com a Produção de ‘Aruanda’ um curta-metragem documental filmado em preto e branco.
Aruanda
“Aruanda”, que significa “terra de promissão”, nasceu a partir de um texto jornalístico escrito pelo próprio Noronha, que tratava dos quilombos e sobre a essência da vida nordestina. Para uma reportagem de 1958, Linduarte visitou as oleiras de Olho d’água, na Serra do Talhado, e descobriu que ali não existia registro documental das origens da região, que outrora fora um quilombo.
Ao ver o filme, o jovem Glauber Rocha, na época crítico de cinema, tornou-se seu defensor e admirador imediato de Noronha. Rocha comparou o pernambucano ao italiano Roberto Rossellini, que com “Roma, Cidade Aberta” (1945) tornou mundialmente conhecido o neorrealismo italiano.
No entanto, a grande repercussão de “Aruanda” veio na década seguinte, quando Glauber Rocha seguiu os passos do ídolo que o inspirou, e substituiu o papel por fotogramas – o que culminou no Cinema Novo. O cinema brasileiro respirava novos ares.
Noronha realizou apenas dois outros filmes depois de “Aruanda”. Tratam-se do curta “O Cajueiro Nordestino” (1962) e de “O Salário da Morte” (1971), primeiro longa-metragem produzido na Paraíba, tendo como local da trama a cidade de Pombal. Este último também rendeu muita discussão. O drama do assassinato de um político por um matador profissional, a mando de gente importante, era tema polêmico no Nordeste dos coronéis, ainda mais no período da Ditadura Militar. Sua história de bastidores acabou inspirando um documentário, “Lição de Fogo”, feito por Larissa Claro em 2007.
A propósito do filme rodado em Pombal (69/70), que teve como Diretor e roteirista o cineasta Linduarte Noronha, conseguir com o idealizador e produtor da obra cinematográfica, W. J. Solha, um depoimento fantástico de como foram às lutas e dificuldades enfrentadas por ele e seu parceiro José Bezerra filho, na realização do intento.
A história verdadeira da elaboração da trama e os contratempos que enfrentaram antes, durante e depois da filmagem nos é contada com exclusividade por W.J. Solha, de quem tive permissão para transcrever na íntegra:
W. J. Solha
Bem, Clemildo, vamos ver o que posso contar com segurança, depois de quarenta e tantos anos: Bezerra (o José Bezerra Filho) já não trabalhava na agência do BB em Pombal. Transferira-se para Goiana, PE, no final de 69 ou começo de 70, quando me escreveu pedindo-me que fizesse o roteiro de um longa-metragem a partir de seu romance Fogo, dizendo-me que haveria a possibilidade de se conseguir financiamento - para a produção - do Instituto Nacional do Cinema, que estava querendo incentivar a produção de filmes adaptados de romances brasileiros, coisa que - afinal - não aconteceu. Como Pombal não tinha nenhuma livraria, fui bater em Catolé do Rocha, atrás de obras sobre o assunto. Ainda tenho um deles: O Processo de Criação no Cinema, de John Howard Lawson, editado em 67 pela Civilização Brasileira. Acabo de ver o carimbo oval na página de rosto, dele: "Lunik Fotografias e Livros, Onildo A. de Lima, Catolé do Rocha - PB". Fiz o roteiro com isso e com a experiência de cinema 80% adquirida no Cine Lux, com programação de qualidade garantida pelo seu Afonso Mouta. Lembro-me de que os letreiros de minha versão abririam (não tenho mais o script) com um caminhão conduzindo produto inflamável (o que é bem simbólico ), na saida de Campina Grande. Detalhe dos pneus chegando ao final do asfalto e passando para a estrada de terra, o poeirão subindo. Aí veríamos o motorista, um homem jovem e forte e, do alto (tomada que seria feita de avião), seu veículo em disparada já na caatinga, quando, então, nós tomaríamos a frente dele , deixando-o bastante para trás, seriam feitos vários takes desse avanço, até que desceríamos na casa do personagem que acabaria sendo interpretado pelo Horácio de Freita. Aí entraríamos nela, varando sala, corredor, um quarto, e lá estaria a foto do motorista, como quem diz "Ele virá para cá e a coisa vai explodir. Literalmente."
Bem, Dias depois, nova carta do Bezerra - como sempre empolgadíssimo - dizendo que meu roteiro era excelente e que ele, Bezerra, fizera contato com o célebre Linduarte Noronha para dirigir o filme. Mais alguns dias, entretanto, e o colega me escrevia de novo, convocando-me para uma reunião, em João Pessoa, com o diretor de "Aruanda". Vi, então, o homem - entre baforadas de seu cachimbo, vozeirão de locutor - dizer-me que o filme com meu roteiro ganharia prêmio em Cannes, mas... Que eu tinha de levar em conta o fato de que nosso mercado era essencialmente o brasileiro, e que justamente o que ele chamava de minha arte afastaria o público. "E cinema, meu caro, é uma indústria: e tem que dar lucro".
Concordamos, então, que eu tiraria uma licença do banco e ficaria algum tempo na capital, para trabalharmos - eu, Bezerra e Linduarte - em nova versão da história, agora mais simples. Fiz isso. Reuníamo-nos todos os dias na casa do Linduarte. E, enquanto ele fumava seu cachimbo, aguava o jardim, conversava (era um grande "causeur" - cosér - conversador, como se dizia na época) eu e o colega trabalhávamos, dias inteiros e noite adentro, daí que Linduarte se limitou a aprovar o que fizemos. Tudo resolvido, partimos para a fundação da empresa Cactus Produções Cinematográficas Ltda, contando com o apoio técnico do ator Miróscene Amorim, que "na vida real" tinha um escritório de contabilidade.
Aí veio - obviamente - o problema da grana. Em quanto orçava o filme? Em cento e tantos milhões de cruzeiros ( não me lembro, francamente, de qual a moeda que circulava na época, tantas foram suas alterações, devido à inflação enorme). Bezerra se prontificou a entrar com seis. Eu, levado pelo entusiasmo, joguei pesado: vendi minha casa, juntei às minhas economias o resultado da venda de um caminhão-caçamba e botei 25 milhões (quanto seria hoje? Não faço a menor ideia) na empresa. Bem, tínhamos 30, então. E o resto? Dei uma palestra para os maiores clientes da agência (de que, na época, eu era o subgerente), mostrando a lucratividade do cinema brasileiro dos anos 60 com dados precisos, mostrei o livro em que Glauber Rocha dizia com todas as letras que Linduarte era um gênio e que tínhamos, portanto, uma estória premiada (o romance do Zé Bezerra ganhara um prêmio literário do então estado da Guanabara), tínhamos um diretor apto pra dirigir uma obra-prima... E tínhamos a cidade de Pombal e seus arredores como cenário. E aí foi a coisa mais louca do mundo: recebemos apoio integral da população, houve até quem assinasse cheques em cima do motor de seu jipe. Tudo somado, apuramos oitenta e poucos milhões. Daria pra deixar o filme bem encaminhado.
Consegui, nesse intervalo, minha remoção pra João Pessoa, para poder participar do período de pré-produção do Salário. Lembro-me de que minha mulher - Ione - chorou quando entramos numa casa que eu alugara na rua Francisca Moura e sentimos cacos do madeiramento - comido de cupins - caindo sobre nossas cabeças. "Ione, eu disse, do jeito que consegui comprar a casa em Pombal, logo teremos outra, aqui. É só manter um pouco de calma. E confiar em que o filme vai nos ajudar a sair do sufoco".
Veio à temporada de testes para o elenco. Bezerra escrevera o romance dele quando éramos vizinhos na "rua dos bancários", do Chiquinho Formiga. Ao criar seu personagem Gedeão, me descrevera. Por isso fui o primeiro a ser escalado por ele para o elenco. Em função de meu típo físico, chamamos um ator da capital - Valderedo Paiva - que uma espécie de alter ego meu bastante melhorado: Valderedo era halterofilista e tinha olhos azuis. Aí foi que pensamos no Horácio de Freitas para ser meu pai. Como ele jamais fora ator, combinamos um teste no Mundo Novo - minifúndio dele -, filmando em 16 mm uma cena do filme de que participavam ele, eu e a irmã Joaninha, que - como quebra-galho - foi o próprio Bezerra quem fez. Rucker Vieira - pernambucano, o diretor de fotografia de Aruanda - foi o câmera. Na verdade, ele iria ser o responsável pelas imagens de "O Salário da Morte", mas não me lembro por que, foi substituído pelo paraibano Manuel Clemente. Horácio saiu-se maravilhosamente no teste. Eu fui horrível. Disse ao Bezerra que arranjasse outro ator pro papel do Gedeão, mas o assistente de direção - Jurandy Moura - disse-me que tinha solução para meu caso: emprestou-me o livro "O Ator de cinema", de Pudovkin e, de fato, compreendi, com o russo, coisas de teatro que nunca deveriam ser feitas ante as câmeras.
A equipe viera a Pombal não apenas pro teste de Horácio. Vinha fazer a escolha de todos os ambientes a serem aproveitados para o filme: igreja do Rosário, a Cadeia Pública, a Rua Nova com a matriz, a casa de Maria do Livramento (Menta), etc. O grupo assistiu, por acaso, no Pombal Ideal Club, a única apresentação de minha peça "O crânio do boi Acauã no esqueleto do angico", que acabaria gerando, décadas depois, meu livro A Canga e o curta do Marcus Vilar com o mesmo nome.
Bem, faltava a jovem que faria minha irmã Joaninha. Fizemos testes e mais testes e a moça que melhor se saiu, na Paraíba foi uma atriz de João Pessoa, Iara Rosas, que recuou quando viu que tinha uma cena de sexo no filme, apesar de mil negociações que fizemos.
Mas a coisa tinha de caminhar. Tempo é dinheiro. Eu e Bezerra fomos a São Paulo, alugar o equipamento da produtora George Jonas. Como não via meus pais e irmãos havia mais de quatro anos, demos uma esticada até Sorocaba, a cento e sete km da capital paulista. Quando vi minha sobrinha Eliane Giardini, disse ao Bezerra: "Olha a Joaninha aí. Ela passaria perfeitamente por minha irmã". Perguntei se ela toparia ir à Paraíba fazer um teste com Linduarte, mesmo sob-risco de ser rejeitada (como Horácio, ela nunca representara). Topou, minha irmã Wandyr e meu cunhado Homero autorizaram o lance e tudo parecia fechado, em termos de elenco, quando Linduarte me disse que eu não iria mais ser Gedeão, mas o pistoleiro do filme. Margarida Cardoso, a grande dama do teatro pessoense, atriz de vários longas do sudeste, que iria fazer minha mãe e mulher de Horácio, me confidenciou que Linduarte e Jurandy tinham trocado meu papel "pra me apagar". Como eu não queria dar uma de presumível autoridade na produção, no entanto, aceitei isso calado... Como meu personagem.
Aí, nova bomba: o maestro Pedro Santos, escalado pra trilha sonora do filme, era uma espécie de guru intelectual da Paraíba, formando nessa liderança tríade com Virginius da Gama e Melo e Juarez da Gama Batista e, usando dessa proeminência, exigira nova reunião da equipe da produção (eu e Bezerra) e da realização (Linduarte, Clemente e Jurandy). Disse-nos, então, que o roteiro que tínhamos em mão era uma merda (literalmente) e que eu e Bezerra já fizéramos muito conseguindo o capital pra rodar o longa. Que fôssemos humildes e entregássemos a tarefa a quem era do ramo - no caso Linduarte, Jurandy e Barreto Neto.
Aí começaram os prejuízos da Cactus. Com o equipamento alugado pagando diária, tivemos de esperar pela realização do novo roteiro, de que fui encarregado de tirar cópias em mimeógrafo. Ao ler o script, no entanto, previ o desastre, senti uma dor de cabeça estúpida, fui ao Bezerra - mas ele viajara pro Recife; fui ao Linduarte - gritou que eu ficasse na minha (O produtor não se mete com o realizador) e o Jurandy não quis conversa. À noite, no subsolo do teatro Santa Rosa, convoquei uma reunião de todos e disse o que achava do roteiro: prejuízo certo! "Se o primeiro que fiz acabaria com a indústria cinematográfica paraibana, imaginem este!" Aí todo mundo caiu de pau em mim e o Bezerra me disse: "Você não tem razão: o roteiro é uma obra-prima".
- Bem - fui claro - Estou nisso até o pescoço, não tenho cacife pra discutir com vocês, vou trabalhar até morrer por esse filme, mas que fique aqui registrada minha opinião: o prejuízo vai ser total.
Bem, rodamos o filme. Geralmente uma produção como a do Salário leva 30 dias para ser filmada. Levamos 64. A lentidão de Linduarte! Participei de vários outros longas, depois, em todos começávamos de madrugada e entrávamos pela noite. Linduarte exigiu ser acordado às 7, parada de duas horas pro almoço, nada de filmar à noite, quando já se tinha trabalhado de dia.
Lembro-me que, como produtor (Linduarte e Bezerra brigaram logo na primeira semana) fui bater na porta do quarto do Linduarte, no Colégio Diocesano, exatamente às 7 da manhã.
Linduarte:
- Hã? O que é?
- Sete horas!
- Porra, tá pensando que isto aqui é o Banco do Brasil?
Foi um inferno. Quando Linduarte morreu, agora, recebi vários telefonemas de jornais, rádios e tvs, pedindo-me depoimentos sobre ele. Recusei-me. Concedi escrever pro Clemildo sobre o assunto, porque Pombal é Pombal.
Típico de Linduarte
Era uma da tarde quando terminamos de filmar uma cena em que Horácio chega da feira com os "filhos" ao casarão do Alto, eu - como pistoleiro - assistindo lá do janelão do sótão a chegada do grupo com seu jumento, a câmera postada atrás de mim, no tripé. Em seguida haveria a filmagem, lá embaixo, do diálogo entre Margarida Cardoso e o filho, que vem com um talho no rosto, feito numa briga na cidade. Levei um susto quando o diretor disse:
- Amanhã filmaremos o resto.
- Cara, é uma da tarde, temos tempo de sobra para isso
- Meu filho, você não entende de cinema: a luz de interior é uma, do exterior é outra, a película tem de ser outra.
- E por que não a troca?
- Ah meu Deus!
O Horácio olhou pro céu:
- Olha, se brincarem não filmam mais nada: o inverno vem aí.
Dito e feito. No dia seguinte lá estava eu atrás de jumento e de tudo mais pra continuação da cena, "Nada feito. - disse Linduarte - O tempo tá fechado. Não dá continuidade com o sol de ontem!" A mesma coisa no dia seguinte. E no terceiro dia.
Bem, aos trancos e barrancos terminamos o filme, Linduarte foi com Pedro Santos pro Rio, pra sonorizar e montar o Salário. E tome despesa. Lembro-me de que, em desespero de causa, apelei pro meu pai, que me emprestou três mil (ou milhões, sei lá) pra pagar uma promissória no Banco do Comércio e Indústria de Campina Grande. No dia em que o dinheiro chegou, Bezerra me trouxe um telegrama de Pedro Santos dizendo que o Laboratório exigia que pagássemos 2.700 ou não teríamos o filme. Levamos o dinheiro e o telegrama pro gerente do banco e ele me deu mais prazo.
Fui me livrar de minhas dívidas pessoais cinco anos depois, com a venda de um carro zero km que saiu num consórcio de fuscas da AABB. Bem, eu e Bezerra fomos dois sonhadores que - com as inesperadas circunstâncias - agiram como irresponsáveis. O lado positivo da coisa toda foi que Pombal produziu o primeiro longa-metragem de ficção em 35 mm da Paraíba. O segundo somente aconteceria umas três décadas depois e com dinheiro público.
Uma saudade a mais, uma esperança a menos, a Paraíba e o cinema nacional estão de luto. Linduarte Noronha morreu na madrugada desta segunda-feira (30), aos 81 anos de idade, depois de sofrer uma parada respiratória. No decreto de luto oficial, o governador Ricardo Coutinho considera o cineasta, nascido em Pernambuco e radicado na Paraíba, "um incansável defensor da arte e das raízes deste Estado e do Nordeste” e ainda um promotor do "resgate histórico e cultural da nossa terra e da nossa gente, fazendo-o um artista vigoroso dentro da Arte Popular Brasileira”.
Clemildo Brunet é radialista, blogueiro e colunista
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